TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE (All The President’s Men, 1976), o clássico definitivo sobre o JORNALISMO RAIZ

Revi Todos os Homens do Presidente uma noite antes do Dia do Jornalista bem em meio à Pandemia do Covid-19 (Coronavírus) e todas as polêmicas geradas por fake news difundidas por robôs eletrônicos, políticos desacreditando a imprensa séria e jornalistas colocados na linha de frente para divulgar e analisar toda a situação de extrema importância para a população.

O filme foi dirigido por Alan J. Pakula a partir do roteiro de William Goldman, baseado no livro escrito pelos jornalistas Carl Bernstein e Bob Woodward, do jornal The Washington Post. Surpreende pela urgência, pelo tempo em que foi concebido. Não custa lembrar: não havia internet, telefone celular, toda a pesquisa era feita na base dos arquivos impressos, listas telefônicas, reportagens antigas, etc.

Um pouco de história

David Arkin, Henry Calvert, Dominic Chianese, Nate Esformes, and Ron Hale in All the President's Men (1976)

Em 17 de junho de 1972 o comitê central do Partido Democrata, no conjunto de prédios Watergate, em Washington, foi invadido. O intuito dos criminosos era a instalação de grampos, escutas telefônicas. As eleições presidenciais se aproximavam e o republicano Richard Nixon tentava o segundo mandato consecutivo.

As investigações jornalísticas ocorreram em 1972. No ano seguinte, começaram as condenações dos funcionários do governo norte-americano responsáveis pelo planejamento, financiamento e o assalto. Em 9 de agosto de 1974, Nixon renunciou – a primeira e única renúncia de um presidente na história dos Estados Unidos. Em 4 de abril de 1976 era realizada a première do longa-metragem, na capital do país. Cerca de quatro anos entre o início dos fatos e o lançamento do filme!

O jornalismo

Como registrou o amigo jornalista Sérgio Vaz em seu site 50 Anos de Filmes: “É, seguramente, um dos melhores filmes que já foram feitos sobre jornalismo. … é sensacional como o filme consegue registrar o que é a vida dentro da redação de um grande jornal, como consegue reproduzir o clima de uma grande redação com uma fidelidade incrível. As reuniões dos editores – impressionante, é como se uma equipe de documentaristas gravasse uma reunião de editores, sem que eles soubessem da existência das câmeras, e se comportassem da maneira mais natural possível”.

Mais impressionante, ou chocante, é notar que: passadas décadas, a relação entre os poderosos e a imprensa livre continua a mesma. Governantes, grandes empresários, quando colocados contra a parede, tendem a desacreditar, derrubar ou censurar jornais, sites, rádios, televisões, revistas, repórteres. Vemos esse tipo de situação em: Todos os Homens do Presidente, como também em The Post – A Guerra Secreta (2017, de Steven Spielberg); o vencedor do Oscar Spotlight: Segredos Revelados (Spotlight, 2015, de Tom McCarthy); Segredos Oficiais (Official Secrets, 2019, de Gavin Hood).

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Em comum todas essas produções são baseadas em fatos e nos mostram como figurões atuam para pressionar os órgãos de imprensa. Há uma relação complexa: muitas vezes grandes jornais, portais, etc, recebem verbas de publicidade do poder público, empresas. Há casos e casos. Conforme esses filmes retratam, há profissionais e órgãos de imprensa incorruptíveis, éticos, determinados. Logicamente há os que atuam em prol das classes dominantes, buscam simplesmente a audiência, o clique.  Cabe a nós, leitores, espectadores, separarmos o joio do trigo, fazemos o filtro mediante o bombardeio de informações diário.

Em países repletos de desigualdades como o Brasil, principalmente no interior, em cidades pequenas, jornalistas são perseguidos, mortos, boicotados, perdem seus empregos. Há veículos de comunicação sujeitos aos gostos dos governantes. Isso quando não pertencem a eles.

Um breve parêntese

Todos os Homens do PresidenteThe Post – A Guerra Secreta e Spotlight: Segredos Revelados formam praticamente uma trilogia informal.

Os acontecimentos narrados em The Post – sobre reportagens que denunciaram o governo norte-americano por manter soldados no Vietnã mesmo sabendo da derrota iminente na guerra – acontecem pouco tempo antes daqueles de Todos os Homens…. E no mesmo local: o The Washington Post.

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Spielberg, por sinal, praticamente recria, na cena final, os momentos iniciais de Todos os Homens…

Personagens verídicos recebem interpretações distintas e igualmente excelentes, destacando o lendário diretor de redação do The Washington Post, Ben Bradlee, vivido respectivamente por Jason Robards, em versão imponente, em 1976, e Tom Hanks, mais bonachão, em 2017. Ambas, entretanto, apresentam um profissional obstinado e que aparece frequentemente com as pernas cruzadas em cima da mesa nas reuniões de pauta.

Robards, em diálogo quase ao término da trama, quando Bradlee conversa com um de seus repórteres sobre a publicação da reportagem, diz uma frase emblemática, espécie de mantra para a história do jornalismo, para os filmes sobre jornalismo: “só estão em jogo a liberdade de imprensa, a Primeira Emenda e o futuro do governo”.

Diz a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos: “O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas”.

É isso. Mesmo com suas imperfeições, a imprensa livre, estruturada, é essencial para qualquer democracia. Deveria ser óbvio, porém de tempos em tempos precisamos reforçar. Jornalistas que se prezam precisam entender suas responsabilidades, sua missão.

Já Spotlight acompanha a série de matérias produzidas pelo The Boston Globe, revelando os abusos sexuais cometidos por padres da igreja católica. O editor do jornal era Ben Bradlee Jr. (papel de John Slattery). Sim, o nome diz tudo: Eita família boa para o jornalismo!

O filme

“O maior filme de investigação jornalística”, define a crítica de cinema Angela Errigo no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer.

Roger Ebert, o maior crítico de todos, muito antes, disse que que a obra era “mais fiel ao ofício do jornalismo do que à arte de contar histórias”. E seguia:  “O filme é tão preciso quanto aos processos usados ​​pelos repórteres investigativos … e, no entanto, o processo acaba sobrecarregando a narrativa – estamos à deriva em um mar de nomes, datas, números de telefone, coincidências, pistas falsas…”.

Jamais ousaria contrariar o grande mestre da crítica de cinema. Longe disso. Realmente Todos os Homens do Presidente nos mostra a dupla de jornalistas indo e vindo na redação, entrevistando, ligando, várias e várias vezes. O que pode soar monótono, arrastado, para alguns. Ebert quis avisar o leitor sobre isso. O filme é uma homenagem ao ofício jornalístico. Não é sobre o Caso Watergate em si. Mas sobre como o jornalismo bem feito, ético, sem medo, sem amarras, sem rabo preso, é fundamental. Não fosse a insistência dos repórteres e o aval dos chefes que confiaram neles, talvez Nixon seguisse no poder. Provavelmente outros desmandos aconteceriam.

Alan J. Pakula, auxiliado pelo diretor de fotografia Gordon Willis, nos joga dentro da redação. Utiliza travellings (movimentos em que as câmeras se deslocam no espaço) para nos fazer “passear” pela redação do The Washington Post, sua grandiosidade, acompanhar os jornalistas pra lá e pra cá, fumando e as teclas incessantes das máquinas de escrever.

Neste sentido percebemos a passagem do tempo e a evolução tecnológica: hoje ninguém fuma (ou não deveria fumar) dentro das redações. As barulhentas máquinas de escrever foram trocadas pelos leves teclados de computadores.

Lindsay Crouse in All the President's Men (1976)

A influência de Todos os Homens do Presidente é tamanha no cinema que Spotlight e The Post praticamente repetem a estrutura narrativa do clássico: a denúncia, a investigação e a apuração dos fatos, as tentativas dos poderosos de tentar impedir o trabalho jornalístico, a publicação das reportagens e a repercussão.

Diferente dos filmes “herdeiros”, porém, não ouvimos música ao fundo. Apenas as teclas. Uma trilha sonora (assinada por David Shire) que é praticamente ancestral ao trabalho do compositor italiano Dario Marianelli em Desejo e Reparação (Atonement, de Joe Wright), que juntaria o som da datilografia à música para dar ritmo à história lançada em 2007.

E nem é preciso uma trilha sonora tipicamente de suspense. A trama vai nos envolvendo aos poucos. Muito graças ao elenco espetacular, encabeçado pelos gigantes Dustin Hoffman e Robert Redford, então respectivamente com 39 e 40 anos e vivendo Carl Bernstein e Bob Woodward. Estavam construindo carreiras sólidas, atuando em obras de destaque da Nova Hollywood, período mais rico do cinema nos EUA, entre o fim dos anos 1960 e toda a década de 1970.

O primeiro estourou em A Primeira Noite de um Homem (The Graduate, 1967, de Mike Nichols). O segundo, em A Caçada Humana (The Chase, 1966, de Arthur Penn) e Butch Cassidy (Butch Cassidy and the Sundance Kid, 1969, de George Roy Hill). Se tornariam lendas do cinema.

Jason Robards in All the President's Men (1976)

Não sei se fizeram algum tipo de estágio nos jornais, porém os dois atores nos convencem como dois repórteres dedicados. Carl e Bob eram da editoria de Local (também Geral ou Cidades, dependendo do jornal).

O primeiro tinha mais de uma década de experiência no The Washington Post, enquanto o colega estava há meses na empresa. Se completavam. Dividiam apuração e texto. O assalto ao comitê do Partido Democrata inicialmente foi encarado como uma pauta policial. Começam entrevistando, os “peixes pequenos”.

Conforme a apuração avança, vão descobrindo o tamanho do escândalo que têm em mãos. O que chama a atenção de outra editoria, de Política. Há embates entre os editores Harry Rosenfield (Jack Warden), de Local, e Howard Simmons (Martin Balsam), de Política. Ninguém quer perder história de tamanha importância. Carl e Bob estavam de plantão quando o tema surgiu, eram jovens e tinham energia. São todos atores maravilhosos, com presença forte na tela, que geram respeito, carismáticos.

Dustin Hoffman and Robert Redford in All the President's Men (1976)

Alguns diálogos são provocativos. Enquanto os protagonistas caminham numa rua de classe média, repleta de casas bonitinhas, tranquilas, em busca de entrevistar uma importante fonte, um deles diz: “Difícil imaginar que numa rua dessas, nessas casas, possa acontecer algo de errado”. Fina ironia, serve para retratar os “cidadãos de bem”, cujo verniz, a aparência, é hipócrita, esconde maldades, crueldades, traições, corrupções, e por aí vai.

Quando Bob encontra com sua principal fonte, o “Garganta Profunda”, o filme beira o suspense de ação, mais ao estilo O Dossiê Pelicano (The Pelican Brief), que Pakula faria em 1993; O Informante (The Insider, 1999, de Michael Mann); e Intrigas de Estado (State of Play, 2009, de Kevin Macdonald).

Os encontros entre Bob e o Garganta Profunda (Hal Holbrook, praticamente imperceptível envolto em sombras) são dignos daqueles entre Comissário Gordon e Batman, quando o chefe de polícia de Gotham City olha para o lado durante a conversa e, quando retorna o rosto em direção ao herói, o Homem-Morcego simplesmente desapareceu. Aqui vemos uma cena igual!

A pressão pelos resultados e as ameaças sofridas por jornalistas estão presentes a tal ponto que, quando volta a pé para casa, Bob acelera os passos e passa a correr e, em determinado momento, toma coragem e olha para trás sem ver ninguém o perseguindo.

Dustin Hoffman and Robert Redford in All the President's Men (1976)

Visto pelo contexto atual, vale observar que Todos os Homens do Presidentes não tem protagonistas femininas. Na redação, poucas mulheres são retratadas: uma delas, repórter, é usada para conseguir, do ex-namorado, uma lista de nomes suspeitos. As demais personagens são esposas, secretárias, assistentes. Ainda assim Jane Alexander, beliscou uma indicação para atriz coadjuvante no Oscar ao viver a escriturária.

Precisamos lembrar que a proprietária do jornal era Katharine Graham. Citada apenas numa frase malcriada dita por um funcionário do governo e por telefone. Em The Post justiça foi feita e ela foi interpretada por ninguém menos que Meryl Streep.

Todos os Homens do Presidente se encerra de maneira brilhante. Vemos Nixon, na televisão, fazendo o juramento após ser reeleito e, ao fundo, Carl e Bob trabalhando sem parar preparando as reportagens que tirariam o presidente do poder. É concluído com as manchetes que revelariam ao mundo todo o escândalo de Watergate. Vemos essas manchetes sendo datilografadas, ao contrário das tradicionais informações complementares ao término da projeção de filmes sobre situações reais. Solução elegante, que serve de documento e homenagem à história do jornalismo raiz.

Nada pouco para uma obra que teve destaque num ano de clássicos e cults como Carrie, a EstranhaRocky, Um LutadorTaxi Driver – Motorista de TáxiRede de Intrigas e O Império dos Sentidos.

Recebeu quatro estatuetas no Oscar: Som, Direção de Arte, Roteiro Adaptado e Ator Coadjuvante para Jason Robards. Teve outras quatro indicações. A vitória, décadas mais tarde, do bom mas inferior Spotlight, não deixa de ser alusão a este clássico do cinema.

Dustin Hoffman and Robert Redford in All the President's Men (1976)

Mais um pouco de história, para finalizar

A fonte conhecida como Garganta Profunda seria revelada ao mundo apenas em 2005, quando W. Mark Felt, vice-diretor do FBI na década de 1970, escreveu um artigo na Vanity Fair narrando sua trajetória.  O codinome adotado pelos jornalistas foi inspirado no filme pornográfico homônimo (Deep Throat) estrelado por Linda Lovelace em 1972. Mark faleceria em 19 de dezembro de 2008, aos 94 anos. O termo virou cult a tal ponto de ser repetido no seriado Arquivo X e no jogo Metal Gear Solid para retratar informantes.

Todos os Homens do Presidente
All the President’s Men
Estados Unidos, 1976.
Direção: Alan J. Pakula.
Com Dustin Hoffman, Robert Redford, Jack Warden, Martin Balsam, Hal Holbrook, Jason Robards, Jane Alexander, Meredith Baxter, Ned Beatty, Stephen Collins.
138 minutos.

Jason Robards in All the President's Men (1976)
Dustin Hoffman, Robert Redford, and Jason Robards in All the President's Men (1976)
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