Por WALDEMAR LOPES
Era o fim do ano de 1976. 0 cenário, uma Salvador em pleno carnaval. Nas salas de cinema, o público brasileiro se divertia assistindo ao irreverente Vadinho (José Wilker), travestido, sambando na rua com uma mulata vestida de Cleópatra. Para o choque dos amigos, de repente Vadinho cai morto. Ouvimos o grito de dor de sua esposa saindo de casa correndo, desesperada, abrindo caminho na multidão com os cotovelos para abraçar o marido morto no chão, as lágrimas banhando-lhe o rosto.
Surgia nessa cena dramática a imagem da bela Sonia Braga como dona Flor, a mais icônica personagem feminina do cinema brasileiro, ao som da música cheia de força e paixão de Chico Buarque, O que será (À Flor da Pele), na expressiva voz de Simone.
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Com sua beleza natural e agressiva, amada pelas câmeras e descrita por Arnaldo Jabor como um “bicho cinematográfico”, a atraente Sonia tem toda nossa atenção, simpatia e solidariedade nos momentos dramáticos e se torna objeto de desejo nos momentos de erotismo.
Seus lindos e grandes olhos são incrivelmente expressivos, fazendo-nos entender cada um de seus pensamentos. Ela sorri o mais lindo dos sorrisos para nos seduzir com sua pulsante sensualidade e dengo.
A trama do grande Jorge Amado é cativante e foi filmada por Bruno Barreto aos 20 anos, um jovem diretor em plena forma. Numa Bahia cheia de gente boa, moleques, malandros, prostitutas, brigas de galos, cassinos e aroma de dendê, surge uma personagem pré-feminismo, Florípedes, mulher séria e trabalhadeira – porém fogosa – casada com Vadinho, descrito por suas amigas como um cafajeste, vagabundo, boêmio, irresponsável, jogador, bêbado, e, entre outras coisas piores, capaz de bater na doce dona Flor e ainda gastar o dinheiro que ela ganha pelas aulas de culinária com jogatina e mulheres.

A única qualidade do malandro era mesmo ser um excelente amante. Com a morte repentina do marido, Flor vê sua vida de casada passar num grande flashback: o casamento, a lua de mel, as brigas, os momentos de intimidade, as refeições. Poucas vezes se registrou tão deliciosamente no cinema a saborosa e colorida culinária brasileira como aqui: Sonia – dona Flor, com muita sensualidade e voz quente, dá a receita de moqueca de siri-mole, favorita de Vadinho, cuja lembrança imediatamente lhe traz saudade do prazer que este lhe proporcionava. O vazio deixado por ele, sem aquelas noites quentes, está perenemente estampado em seu olhar. Outro grande momento de Sonia se dá em outra dolorida lembrança, quando ela vai a um cortiço procurar uma prostituta que pode ter tido um filho de Vadinho. A câmera a segue pelas ruas sujas até a misteriosa mulher e nesta longa sequência Sonia transmite o comovente drama de dona Flor com grande sensibilidade, revelando um segredo que a atormenta.
Todo esse sofrimento chega a um final quando ela passa a ser cortejada pelo farmacêutico Teodoro Madureira (Mauro Mendonça), um respeitável senhor amante de música clássica e é, finalmente, pedida em casamento, para a alegria de todos.

Sonia Braga mostra toda a delicadeza de Flor, sua dedicação ao novo lar e o renovado gosto pela burguesia. Teodoro é um homem de caráter, mas terrivelmente metódico no trabalho, na organização da casa (chega a etiquetar gavetas) e para piorar, no sexo. Sonia soube usar como ninguém seu lado pimenta com dendê nas ousadas cenas de sexo com Vadinho. Já no segundo casamento, ela demonstra perfeito timing de comédia nos momentos que tem que lidar recatadamente com a timidez do novo marido, o extremo oposto do primeiro.
A baiana chega a um ponto em que seu desejo ardente por Vadinho acaba por trazê-lo de volta do além, e assim o filme instiga o público com elementos habilmente colocados por Jorge Amado em sua obra: vida, morte, desejo, casamento, comida, sexo e religião.
A interpretação iluminada de Sonia evidencia com matizes a realização completa de Flor naquele que é ou era o sonho ou fantasia de toda mulher (pelo menos naquela época): ter dois maridos, um que lhe desse a segurança de um casamento sólido e outro que lhe proporcionasse ardente prazer. A fantasia lhe traz uma situação insólita: como transitar com naturalidade entre o respeitoso, pudico e cavalheiro Teodoro (o impagável Mendonça) e o atrevimento, a safadeza e vadiagem do fantasma de Vadinho (o hilariante Wilker)? Sonia retrata brilhantemente o dilema de Flor nesse momento, questionando seus conceitos de fidelidade e traição.

O triângulo de atores está em perfeita sintonia e eles deitam e rolam com uma química raramente vista em nossas telas. Sonia já havia trabalhado anteriormente com Wilker no bom filme O Casal, de Daniel Filho, e confessou aos dois numa recente entrevista no Canal Brasil que naquela época era apaixonada por Wilker, um sentimento não correspondido.
Sonia passou por alguns sacrifícios para compor a personagem, como voltar a se bronzear, um requisito que já lhe fora imposto para interpretar “Gabriela” no ano anterior, na tv. Reza a lenda que nada foi mais traumático para ela do que cortar na altura dos ombros a lendária cabeleira que lhe alcançava a cintura, coisa que deixou para fazer na última hora, quando Bruno Barreto impacientemente deu-lhe um ultimato e disparou, “Sonia, corta esse cabelo!”. Com a bênção de Jorge Amado, Sonia, uma paranaense cheia de baianidade, encarnou no cinema com perfeição essa clássica personagem do cultuado escritor. Ela consolidaria sua imagem de perfeita tradução do universo feminino de Jorge Amado interpretando Gabriela (pela segunda vez) em 1983, novamente dirigida por Bruno e Tieta do Agreste, de Cacá Diegues, em 1996, vinte anos após Dona Flor. Jorge nunca escondeu ser ela sua atriz predileta e declarou: “Ela é três vezes minha filha”. O impressionante é que o grande talento de Sonia a possibilitou construir essas três personagens dando-lhes personalidades totalmente distintas, com identidade própria, em minucioso estudo do visual, gestual, voz, olhar e canalização da sensualidade de cada uma delas.
Mas foi dona Flor, sem dúvida, que a lançou para o estrelato e abriu-lhe as portas para uma carreira internacional, alavancada mais tarde por O Beijo da Mulher Aranha. Sonia foi aos Estados Unidos para a estreia do filme em Nova York. Depois de ter sido consagrada em solo brasileiro pela notável atuação, foi a vez da atriz, agora diva absoluta do nosso cinema, receber os louros em terra estrangeira. A crítica americana se curvou a ela, mais notavelmente a feroz e temida Judith Crist, que no New York Post, declarou: “Sonia Braga é uma alegria de se ver…. ela é totalmente irresistível”. A Vogue também não deixou por menos: “Sonia Braga é uma nova glória”. E Rex Reed decretou: “Sonia Braga é como uma pintura vista em diferentes luzes”. A grandiosa interpretação de Sonia não passou despercebida nas premiações: conseguiu a façanha de ser a primeira atriz brasileira a ser indicada a um BAFTA como “most outstanding newcomer to leading film roles”. Uma curiosidade é que “Dona Flor e Seus dois Maridos” talvez seja o único filme brasileiro que teve um remake americano de qualidade (reconhecidamente inferior), Meu Adorável Fantasma (Kiss me Goodbye, 1982), com Sally Field (como Kay – Flor, e que viria a trabalhar com Sonia na série Brothers & Sisters), James Caan (Jolly – Vadinho) e Jeff Bridges (Rupert – Teodoro), numa prova evidente do sucesso do filme brasileiro.

Entre tantos acertos, a escolha de Sonia Braga para o papel de dona Flor foi fundamental para o êxito colossal do filme (Regina Duarte chegou a ser sondada e recusou o papel), e embora outras atrizes tenham se arriscado no papel em outras adaptações (Carol Castro numa adaptação para o teatro e Giulia Gam numa minissérie para a Globo), nenhuma chegou perto da perfeição alcançada por ela. Tamanha repercussão teve este trabalho na época que Sonia foi capa de inúmeras revistas, inclusive a da Veja, além de encarnar dona Flor em trabalhos de publicidade, tais como anúncios em jornais e revistas e num comercial de TV para uma margarina Flor (e que pode ser conferido no Youtube). Nada mal para quem chegou de mansinho no cinema participando justamente num curta-metragem, Atenção, Perigo!, de José Rubens Siqueira. A partir deste curta-metragem Sonia foi fazendo pequenas participações em longas, sendo a primeira em O Bandido da Luz Vermelha, segundo ela, aos risos, “um fotograma”. Mas destinada ao sucesso, pouco tempo depois já estrelava o extremamente bem realizado musical dirigido por Glauco Mirko Laurelli, A Moreninha, outra querida heroína da literatura brasileira.
Dona Flor e Seus Dois Maridos consagrou-se o grande campeão de bilheteria nacional em 1976 e por incríveis 34 anos ficou nesse posto até que “Tropa de Elite 2” finalmente lhe tirasse do posto. Ao comentar o fato, disse-me recentemente a adorável Sonia, com seu bom humor e inteligência: “Foi preciso uma Tropa de Elite para derrubar Dona Flor!”, e continuou, “Mas fico feliz pelo cinema nacional!”, concluiu. Com sua arte, beleza e sensualidade, Sonia tem enriquecido o cinema nacional com desempenhos magníficos, inesquecíveis e “porretas”, como está sua Dona Flor! Bravo, Sonia!
Dona Flor e Seus Dois Maridos
Brasil. 1976.
Direção: Bruno Barreto.
Com Sonia Braga, José Wilker, Mauro Mendonça, Nelson Xavier.
110 minutos.
WALDEMAR LOPES é artista plástico, engenheiro mecânico, professor, cinéfilo. Anualmente realiza em Santos uma palestra beneficente sobre o Oscar, que se tornou tradicional na cidade. Também já realizou encontros sobre cinema para a Universidade Católica de Santos, Universidade Monte Serrat, Secretaria de Cultura de Santos e Rotary. Escreve para o CineZen e o 50 Anos de Cinema. Cedeu seus acervos pessoais para exposições no Santos Film Fest – Festival Internacional de Cinema de Santos sobre Julie Andrews e Sonia Braga, atrizes das quais é o maior especialista no Brasil.


