Por WALDEMAR LOPES
Tieta do Agreste, de Cacá Diegues, marcou a volta triunfal da musa Sonia Braga ao cinema brasileiro em 1996. A estrela havia adquirido os direitos da adaptação da obra para o cinema com o próprio Jorge, que a chamava de ”minha filha”, logo após terminarem as filmagens de Luar Sobre Parador, uma deliciosa comédia de Paul Mazursky, no final dos anos oitenta.
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Ao saber que uma novela seria transmitida pela Rede Globo, tomou a sábia decisão de esperar um bom tempo para dar início ao projeto, também como produtora executiva. Curiosamente, os direitos para o cinema estiveram retidos durante anos pela diretora italiana Lina Wertmuller, que pretendia ter Sophia Loren no papel título.
Também comentava-se que Robert Redford iria dirigir Sonia – os dois haviam trabalhado juntos em Rebelião em Milagro e estavam namorando na época. Todavia, muitos anos se passaram, o relacionamento acabou e a direção acabou ficando a cargo do mestre Cacá Diegues, grande amigo da atriz, mas que nunca a havia dirigido. Este famoso longa do cineasta deu continuidade à retomada do cinema nacional iniciada com o festejado Carlota Joaquina, a Princesa do Brasil, de Carla Camurati, e reuniu uma equipe de grandes talentos nacionais em estado de graça. A inspirada abertura é simplesmente antológica, com o próprio Jorge Amado, um monumento nacional, lendo as primeiras linhas deste que é um dos seus mais famosos romances, dando sua bênção à produção.

Com o roteiro primoroso do grande João Ubaldo Ribeiro, assistido por Antonio Calmon e o próprio Cacá, o filme resultou mais fiel à obra do extraordinário escritor baiano que a versão para a TV. A bela, sensual e impetuosa Tieta – Sonia Braga, ensolarada e exuberante – volta à sua cidadezinha natal, Santana do Agreste, não para se vingar, mas para ser amada, vinte e cinco anos após ter sido expulsa de casa pelo próprio pai Zé Esteves (o ótimo Chico Anísio), por comportamento considerado indecente.
A chegada de Tieta tem o impacto da passagem de um furacão.
Acompanhada pela enteada Leonora (a sempre bonita e excelente Claudia Abreu), ela desce de seu carro importado vermelho em grande estilo, vestindo a mesma cor, de peruca loira e óculos escuros. Poderia ser esta linda cena uma metáfora para a volta da própria Sonia às nossas telas, vinda de uma vitoriosa carreira nos EUA? Os adultos e crianças pulando de alegria na praça poderiam muito bem estar representando o povo brasileiro recebendo de volta sua rainha das bilheterias – Dona Flor e Seus Dois Maridos e A Dama do Lotação estiveram no primeiro e segundo lugar por 35 anos e agora estão em segundo e terceiro, respectivamente.
De qualquer forma, foi uma grande emoção, sem dúvida, rever o lindo sorriso de Sonia e sua famosa íris cor de mel no lugar que sempre pertenceu a eles: o cinema nacional, e uma vez mais, no universo jorgeamadiano.

Com seus longos cabelos revoltos ao vento e exalando sensualidade, Tieta vai, após sua celebrada chegada, procurar passar a limpo sua história na cidade, começando pelo triste relacionamento com o pai e a irmã – a invejosa, falsa e mesquinha Perpétua (Marília Pera, colossal), mais interessados em dinheiro que em sentimentos. Depois que os cheques mensais de Tieta não mais chegavam, acreditavam-na morta. A felicidade com seu retorno se dá por causa do alívio financeiro. Mas é por pouco tempo: novos conflitos surgirão através dos mistérios da vida de Tieta, da sua aproximação com o filho de Perpétua – o coroinha Ricardo (Heitor Martinez), e da paixão do secretário da prefeitura, Ascânio (Leon Góes), por Leonora.
Entre os grandes trunfos do filme estão os diálogos inteligentes e ferinos (com ocasionais palavrões que soam mais divertidos que chocantes), a dose certa de drama e humor e a fotografia deslumbrante de Edgar Moura, que retrata magnificamente o colorido das praias, casinhas, coqueiros e dunas do nordeste brasileiro. Some-se a essa respeitosa lista, uma das mais lindas trilhas sonoras já feitas na história do cinema: a música maravilhosa de Caetano Veloso, nas magníficas vozes do próprio Cae, Gal Costa e Zezé Motta (que interpreta a amiga Carmosina).
Por fim, que privilégio poder apreciar esse grandioso elenco – Sonia, Marília, Claudia, Chico, e também Jece Valadão e Daniel Filho.

Sonia Braga se estabelece aqui como a perfeita tradução das personagens de Jorge Amado. Impressiona a versatilidade da icônica atriz, que criou as antológicas Gabriela, Dona Flor e Tieta com gestual, tom de voz, entonação, movimentos e looks totalmente distintos, nunca caindo numa repetição, num déjà-vu. Sua Tieta surge como uma baiana arretada, belíssima como uma pintura de Di Cavalcanti que tomou vida, um vulcão em erupção, uma força da natureza. Conforme descreveu Arnaldo Jabor, ela preenche a telona com o magnetismo de um bicho cinematográfico.
Sonia diverte, emociona, encanta e seduz com sua beleza e naturalidade, seja vestindo uma simples toalha branca, um figurino marcante de Ocimar Versolato ou simplesmente nada. Um jornalista revelou numa longa matéria para a revista Playboy que a generosa estrela anonimamente ajudou algumas pessoas carentes da minúscula Conceição de Jacuípe, no interior da Bahia, onde foram realizadas as filmagens. Sonia é assim mesmo. Cheia de luz, como sua personagem. Tive o prazer de estar na pré-estreia de Tieta do Agreste, em São Paulo, e a felicidade de conhecê-la e brincar com ela: juntos improvisamos uma cena de seu primeiro sucesso, A Moreninha, e nos divertimos com os curiosos olhares de convidados e da imprensa. Marcaram presença celebridades vindas dos quatro cantos do Brasil, até o então presidente Fernando Henrique Cardoso. A noite foi um sucesso.
Na época do lançamento do filme, com impressionantes 117 cópias no país (lembrando que o governo Collor havia acabado com o cinema nacional poucos anos antes), uma parte da crítica foi muito dura com esse alegre e energizado trabalho de Cacá Diegues, criticando o orçamento (R$ 5 milhões), o merchandizing (do Banco Real) e a empolgante sequência nas dunas com Sonia e Claudia, citada como propaganda turística. Uma injustiça, já que inúmeros filmes, incluindo clássicos, não se intimidaram ao mostrar seus astros tomando Coca-Cola ou fumando certas marcas de cigarro. E R$ 5 milhões mal pagavam o salário de um astro hollywoodiano.

Felizmente, a Folha de São Paulo saiu em defesa do longa com uma brilhante matéria de página inteira escrita por Inácio Araújo, intitulada A crítica diante da barbárie – Ataques à Tieta atestam a situação agonizante da cultura cinematográfica. Também defenderam o filme, com muitos elogios, os críticos de O Estado de São Paulo, Luiz Zanin Oricchio – “Tieta do Agreste chega às telas com fascínio”, e Helena Salem – “Tieta do Agreste é um filme generoso e Sonia Braga ilumina a tela na sua absoluta intimidade com a câmera”.
Rubens Ewald Filho, que sempre reconheceu o talento e importância de Sonia no cinema brasileiro, fez uma inspirada, perfeita apresentação do filme para o VHS lançado pela revista IstoÉ na coletânea Novo Cinema Brasileiro. Alguns críticos, tempos depois, acabaram fazendo um mea culpa e reconheceram as inúmeras qualidades desse cult nacional. Outro fato interessante é que Sonia Braga também protagonizou um comercial para os postos BR, como Tieta e como ela mesma, em seus respectivos carros, sendo atendida pelo confuso frentista Wagner Moura. O memorável encontro registra Sonia/Tieta atuando com Wagner/Capitão Nascimento, estrela e astro dos dois maiores campeões de bilheteria do cinema brasileiro. Quando Tropa de Elite 2 finalmente superou o reinado de 35 anos de Dona Flor e Seus Dois Maridos na primeira posição, a bem-humorada Sonia disparou, “Foi preciso uma tropa de elite para derrubar Dona Flor!”
Tieta do Agreste
Brasil, Reino Unido, França. 1996.
Direção: Cacá Diegues.
Com Sonia Braga, Marília Pêra, Chico Anysio, Cláudia Abreu, Heitor Martinez, Jece Valadão, Zezé Motta.
115 minutos.
WALDEMAR LOPES é artista plástico, engenheiro mecânico, professor, cinéfilo. Anualmente realiza em Santos uma palestra beneficente sobre o Oscar, que se tornou tradicional na cidade. Também já realizou encontros sobre cinema para a Universidade Católica de Santos, Universidade Monte Serrat, Secretaria de Cultura de Santos e Rotary. Escreve para o CineZen e o 50 Anos de Cinema. Cedeu seus acervos pessoais para exposições no Santos Film Fest – Festival Internacional de Cinema de Santos sobre Julie Andrews e Sonia Braga, atrizes das quais é o maior especialista no Brasil.


