Crítica | MULHER-MARAVILHA 1984 faz jus aos filmes de aventura lançados nos anos 1980

Mulher-Maravilha (2017) foi um filme importantíssimo, divisor de águas até. O primeiro blockbuster baseado em histórias em quadrinhos, com orçamento e produção decentes, sucesso de público e bem recebido por grande parte da crítica especializada, protagonizado por uma super-heroína. Representatividade importa. Meninas do mundo inteiro puderem se enxergar em Diana/Gal Gadot. Supergirl, de 1984, com Hellen Slater visualmente perfeita no papel da prima do Superman, fracassou intensamente e era dirigido por um homem, Jeannot Szwarc. Melhor nem lembrarmos de Mulher-Gato (2004), com Halle Berry.

| A história da Mulher-Maravilha, com Lilliam Tavares

| Crítica | Mulher-Maravilha (2017)

| Quem é Gal Gadot, a atual Mulher-Maravilha?

Franquias de ação/aventura estreladas por mulheres já davam certo no cinema, há tempos. Desde Alien com Sigourney Weaver, passando por Tomb Raider com Angelina Jolie, e Resident Evil, com Milla Jovovich. Uma breve digressão: essas três franquias têm ligação ao universo nerd/geek. A primeira é de ficção científica, enquanto as outras duas são baseadas em games. Por que, então, demorou tanto tempo para termos uma superprodução cinematográfica com uma super-heroína vinda dos gibis? Será que o machismo, a misoginia, estão mais presentes dentro deste contexto da nona arte? Fica a reflexão. Vale lembrar que, nos anos 1970, a mesma Mulher-Maravilha teve uma série televisiva de muito sucesso e que marcou gerações. O fato é: Mulher-Maravilha, o filme, foi fundamental para que até a rival Marvel desse o sinal verde para seu primeiro filme-solo feminino, Capitã Marvel (2019), cuja bilheteria ultrapassou a marca do bilhão. Não é pouca coisa.

Também é preciso salientar: importância, relevância, não são sinônimos de filme perfeito. O longa dirigido por Patty Jenkins é excelente. No entanto, apresentava uma certa queda de qualidade principalmente no terço final da trama: provavelmente aquele em que o produtor Zack Snyder colocou o dedo. Se na maior parte da história havia sensibilidade, uma trilha sonora condizente ao mostrado na tela, no terceiro ato a música descamba para o exagerado, surgem explosões, e até momentos esquisitos: quando Mulher-Maravilha, após usar sua espada e ferir mortalmente um algoz e, em seguida, ser confrontada por Ares e perceber que deixou a arma cravada no cadáver no teto do edifício. Fica o suspense no ar. Corta para outra cena. Quando volta a Amazona foi ao telhado, pegou a espada de volta, retornou e o diálogo com Ares continua. Para que o suspense inicial, então? Um deslize bobo para uma obra bem realizada, principalmente o início na Ilha Paraíso (sim, aprendi a chamar a terra natal de Diana assim, e não Themyscira).

Ainda em 2017, Mulher-Maravilha não recebeu o melhor tratamento em Liga da Justiça, o Frankenstein que chegou aos cinemas.

E chegamos a Mulher-Maravilha 1984, o principal lançamento de 2020, ao menos no quesito blockbuster e no período depois ao início da pandemia do novo coronavírus. Equipe criativa mantida, Zack Snyder distante (mesmo com o nome presente entre os produtores), e a expectativa era alta.

Jenkins assina o roteiro ao lado de Geoff Johns (oriundo das HQs e um dos responsáveis pelo bastante irregular Lanterna Verde, 2011), e Dave Callaham (da divertida série Jean-Claude Van Johnson e que escreve Shangi-Chi para a Marvel).

Os resultados, tanto de roteiro quanto de direção, transformam o filme numa típica continuação das franquias de ação ou super-heróis dos anos 1980. A trama gira em torno de uma pedra que realiza desejos. É ambientada em 1984 e o núcleo principal reúne Diana Prince/Mulher-Maravilha (Gal Gadot), sua colega de trabalho Barbara Minerva (Kristen Wiig), o empresário de mídia Maxwell Lord (Pedro Pascal) e o grande amor da protagonista, Steve Trevor (Chris Pine). Morto no filme anterior, nem é preciso descrever como o galã retorna.

Explico o motivo da aventura remeter tanto às continuações dos anos 1980. Para quem cresceu naquela década, lógica não era algo que buscávamos nos filmes. Queríamos ter diversão, boas cenas de luta. Por exemplo, a quadrilogia Superman, com Christopher Reeve. Patty Jenkins não cansa de dizer que o primeiro, de 1978, que definiu o bê-á-bá dos filmes de origens para super-heróis, foi sua maior, ou uma das maiores influências. Tanto que, em 2017, ela praticamente repetiu a cena do beco: no clássico de Richard Donner Clark Kent agarra a bala disparada pelo ladrão e salva Lois Lane; décadas depois Diana defende Steve Trevor dos tiros inimigos. Agora Jenkins declara, em entrevistas, desejar dirigir um longa-metragem do Último Filho de Krypton.

Desde o primeiro Superman, de 1978, passando por todas as continuações, acompanhamos momentos sem pé nem cabeça. Super-Homem gira o mundo ao contrário para voltar ao tempo e ressuscitar Lois. Dá certo, mas e todos os outros acontecimentos que ocorreram? São simplesmente ignorados. Em 1980, em Superman II: A Aventura Continua, é dito que, se abrir mão de seus poderes, Clark jamais poderá recuperá-los. Logicamente isso não ocorre. E no terceiro, quando Clark e um Superman maligno se enfrentam num ferro-velho? E no quarto, em que o Homem-Nuclear é criado a partir de um fio de cabelo do herói? Nada fazia muito sentido, entretanto adorávamos. Bem, nos divertíamos com Aventureiros do Bairro Proibido e até com as produções precárias da Cannon…

Mulher-Maravilha 1984 vai por esse caminho. Se fosse lançado naquela década, possivelmente passaria incólume. A questão é lá se vão mais de 35 anos e os roteiros desse tipo de produção evoluíram, bem como as exigências do público. Particularmente, a mim não afeta muito justamente por eu ainda conseguir me divertir com aquelas histórias descabidas, leves e coloridas de antigamente.

Se bem que fiquei pensando: 1984 (e o ano no título de MM1984 não é mera coincidência – ainda há a citação ao livro de George Owell) teve uma das temporadas de verão cinematográfico mais criativas e emblemáticas da história de Hollywood. Foram lançados clássicos e cults que repercutem até hoje: Gremlins, Footloose – Ritmo Louco, Um Tira da Pesada, O Exterminado do Futuro, Ruas de Fogo, Splash: Uma Sereia em Minha Vida, Duna, Indiana Jones e o Templo da Perdição, A História sem Fim, Loucademia de Polícia, Os Caçãs-Fantasmas, Jornada nas Estreças 3 – À Procura de Spock, Purple Rain, Sexta-Feira 13: Capítulo Final, Conan, o Destruidor, Greystoke – A Lenda De Tarzan, A Hora do Pesadelo, A Última Festa de Solteiro e tantos outros. Entre essas produções, Mulher-Maravilha 1984 seria lembrado como um dos mais legais? Há alguma cena icônica? O primeiro MM tem: quando Diana sobre as escadas e rompe a Terra de Ninguém para dar fim ao conflito bélico. Sinceramente, não sei.

Kristen Wiig e Pedro Pascal.

Os tons da fotografia concebida por Matthew Jensen (de Game of Thrones e outros seriados) lembra a aura de Superman, O Filme. A própria participação do roteirista Dave Callaham (de Os Mercenários, ressalta o caráter de homenagem aos anos 80). E o elenco se diverte do jeito que dá.

Escrevi na crítica do primeiro filme e repito: Gal Gadot não é grande atriz. Tanto que, naquela obra, Patty Jenkins a filmava em planos curtos, sem falas longas, dando ênfase ao que a israelense tem: carisma. E isso ela tem de sobra. Mais ou menos ao estilo de Hugh Grant: que não é conhecido por sua versatilidade, mas pelo prazer que dá ao espectador em vê-lo em cena. Sua simples presença nos diverte, empolga.

Neste, Gadot até recebe cenas e falas mais esticadas. A falta de fluência em inglês, dita aos quatro cantos pela atriz, a faz ter um sotaque bastante peculiar e confere certa autenticidade à Diana e camufla sua falta de maior experiência para atuar. Ao público, passa despercebido. Uma breve comparação: quando assistimos a um filme polonês, ou coreano, legendados, certas nuances da fala, da entonação, de sotaques locais, não são perceptíveis. Ou o mesmo para um estrangeiro que assista a filmes e séries brasileiros. Nós, do mesmo país, sabemos distinguir os sotaques de um carioca, de um paulistano ou de alguém do interior (e mesmo no interior há vários sotaques diferentes). Para uma produção brasileira que retrate essas diferenças, ao analisarmos a atuação dos atores levamos isso em conta. Um estrangeiro, por outro lado, não conseguirá percebê-las. Acredito que isso tenha validade ao conferirmos a Mulher-Maravilha de Gal Gadot.

Kristen Wiig e Pedro Pascal estão impagáveis. Conforme disse a colega Isabela Boscov, difícil acreditar que, mesmo despenteada e usando roupas não tão belas, alguém ignorasse Kristen Wiig. Destaque em comédias, a atriz sai-se bem no papel da vilã. E Pedro Pascal revela-se um camaleão. Excelente na série O Mandaloriano, aqui surge fanfarrão, exagerado, um típico vilão oitentista assim como o Lex Luthor de Gene Hackman ou o Coringa de Jack Nicholson, guardadas as devidas proporções, mas igualmente cheio de caras e bocas. Chris Pine tem a química certa ao lado de Gal Gadot e está à vontade no personagem.

Chris Pine e Gal Gadot.

Não entrarei na discussão sobre Mulher-Maravilha, décadas depois, continuar apaixonada pelo mesmo homem. Há quem ache isso um absurdo nos tempos atuais, totalmente contrário à independência feminista. Esse debate já ocorreu em Liga da Justiça, cuja trama é ambientada mais três décadas à frente de MM1984 e Diana continua ligada ao passado e a Steve Trevor. Quem deve dizer o que sente, decidir qual caminho seguir, é unicamente Diana e se ela preserva os sentimentos e não quis mais se envolver amorosamente, só cabe a ela. E à Patty Jenkins.

Quanto à mensagem geral de Mulher-Maravilha 1984, de que devemos valorizar o que temos, acho válida. Não raras vezes tendemos a dar valor ao que não importa. Porém passo a questioná-la quando essa mensagem parte de quem integra o topo da pirâmide dos privilégios, pessoas brancas, ricas, que já nasceram em condições de trilhar o caminho que desejassem. E quando um blockbuster de profunda propagação faz isso, precisamos ter cuidado. Num país de extremas desigualdade social e concentração de renda, com comerciais de televisão dizendo o tempo inteiro qual tipo de roupa, de celular, de carro, as pessoas devem ter, não dá para defendermos que alguém, por exemplo, que nasce na favela, sem perspectivas, que passe fome, que precise se virar com o pouco que tem para sobreviver, aceite sorrindo o que a vida lhe proporciona. Valorizarmos familiares, amigos, ok. Só não podemos impedir que pessoas tenham vontade de crescer, melhorar de vida, ascender socialmente. Há uma linha tênue na mensagem do filme e devemos recebê-la e debatê-la.

Para concluir, não podemos entrar na onda dos nerds recalcados que têm se deleitado com as irregularidades e as críticas que Mulher-Maravilha 1984 tenha ou venha recebendo. Isso parte, muito, do filme ser estrelado por uma mulher. Não vamos vendar os olhos aos preconceitos presentes dentro do universo geek e nerd e que faz marmanjos molharem as fraldas por que alguns de seus personagens favoritos atualmente são retratados em gêneros ou orientações sexuais diferentes. Vale lembrar que um dos piores filmes da história, incluindo todos os gêneros cinematográficos, Batman Eternamente (1997), é estrelado por um protagonista masculino. Não faltam produções desastrosas protagonizadas por homens. E é extremamente válido e necessário que tenhamos mais e mais histórias contadas e estreladas por mulheres, sejam elas boas ou nem tanto. O importante é que elas existam e sejam concebidas mais e mais vezes.  

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